Consumo e produção musical se transformam em meio aos serviços de streaming

Diante do imediatismo e da preferência dos usuários por faixas curtas, produtores pensam em estratégias para deixar as músicas mais objetivas e assim gerar mais engajamento

Por: Redação. Quarta-feira, 26 de Janeiro de 2022.

 

maneira como escutamos músicas e as estratégias utilizadas para produzi-las têm se transformado. Com a popularização dos serviços de streaming, surgem novos hábitos e tendências. É o caso, por exemplo, do fenômeno chamado de audição ansiosa, um padrão de comportamento em que as pessoas escutam apenas músicas de curta duração.

Para entender como o streaming pode transformar o consumo e a produção musical, os algoritmos que funcionam nesses programas são essenciais. “As plataformas armazenam dados de milhões de pessoas, com exemplos de hábitos de escuta de cada usuário no seu cotidiano”, afirma Fernando de Moraes, pesquisador do Centro de Estudos em Música e Mídia (Musimid).

Esses dados são utilizados para mapear a paisagem sonora, os locais e até os sentimentos e emoções dos usuários. “Milhões de músicas transitam nisso dentro de um ecossistema de escuta”, conta Moraes. Dessa forma, segundo o pesquisador, as plataformas modificam o mercado musical na medida em que ampliam o contato entre a música e a tecnologia.

Consumo de músicas no streaming

Com acesso a esses dados, as plataformas recomendam músicas de maneira personalizada, seguindo critérios que se encaixam no perfil do usuário. O ouvinte tem um papel menos ativo na busca por novas obras e passa, de maneira mais passiva, apenas a responder às sugestões da plataforma.

Heloísa Valente – Foto: Reprodução

Outro aspecto importante é o caráter digital e imaterial do streaming. “Quando eu pego um disco, por exemplo, de vinil, existem outras qualidades materiais que estão no nível do palpável, do sensível”, afirma Heloísa Valente, professora da Pós-Graduação em Música na USP, da Universidade Paulista e coordenadora do MusiMid. Essas qualidades só estão presentes em mídias físicas.

Segundo a professora, nessas mídias, o consumo de uma música é mais lento e contemplativo. “A gente precisa pegar, sentir, o nariz também responde se é um disco novinho ou mofado, afora as qualidades visuais de capa e encarte”, explica. Já nas mídias digitais esse consumo é mais imediatista. “Em termos de sensibilidade e conduta de escuta, é muito diferente”, compara Heloísa.

O imediatismo está diretamente relacionado com o fenômeno da geração ansiosa. Estimativas das próprias plataformas indicam que, em média, os usuários não escutam músicas com mais de 2 minutos e 30 segundos de duração. Segundo Moraes, esse é um reflexo de uma nova realidade marcada pelos fluxos de informação.

“A gente vive dentro de um espaço em que as pessoas não querem perder mais tempo. As músicas estarem mais curtas é um reflexo desse tempo que as pessoas não têm e a relação de soluções mais imediatas para a vida de uma forma geral”, avalia.

O pesquisador também pontua que, no streaming, o usuário não precisa comprar os conteúdos de maneira isolada. A assinatura do serviço libera o acesso a toda a biblioteca. Nesse contexto, “cresce a experimentação e a degustação da música como sabores novos”. É como se as pessoas preferissem ouvir várias faixas curtas a ouvir uma única faixa longa.

Nessas plataformas também é possível montar listas de reprodução e tocar as músicas em modo aleatório, fora da sequência do álbum. Se por um lado essas possibilidades permitem que o usuário personalize ainda mais sua experiência, por outro pode descaracterizar o trabalho do compositor.

A cantora Adele, por exemplo, pediu que a reprodução aleatória do seu álbum, 30, seja bloqueada. “”Não criamos álbuns com tanto cuidado e refletimos tanto na ordem das faixas por nenhum motivo. Nossa arte conta uma história e nossas histórias devem ser ouvidas como pretendíamos”, escreveu a cantora em suas redes sociais, alegando que o modo aleatório prejudica a linearidade e o conceito da obra.

O mercado fonográfico no streaming

Mudanças na música diante de novas tecnologias sempre existiram e não são exclusivas do streaming – Foto: Pixabay/Flickr

Para atender às novas demandas e hábitos, a produção musical também se transforma. Os próprios músicos e produtores pensam em modos para tornar as faixas mais diretas, objetivas e atrativas em meio a tantas possibilidades. Além da menor duração, o reposicionamento do refrão para o início da música tem sido uma estratégia adotada para gerar atenção imediata do ouvinte.

Na avaliação de Heloísa, o maior desafio é a distribuição dessas obras, e não sua produção. “Aquilo que acontecia na gravadora foi migrado para a plataforma”, explica. “Os critérios não são os de produzir o disco, mas de como fazer ele vendável.” O próprio conceito de álbum enquanto conjunto de faixas produzidas pelo artista tem sido superado. Muitos produtores preferem lançar singles ou faixas isoladas. “Talvez, se tiver outras peças juntas no mesmo pacote, não tenha a mesma repercussão e vendagem. Se ele lançar uma a uma pode ter mais sucesso”, explica a professora, ao comentar as estratégias de distribuição.

Apesar dessas transformações, os pesquisadores ressaltam que mudanças na música diante de novas tecnologias sempre existiram e não são exclusivas do streaming. Nessa nova realidade, as músicas que seguem os critérios de engajamento têm maior chance de sucesso, mas não significa que esse seja o fim das produções longas e elaboradas.

Por fim, Heloísa destaca que as plataformas de streaming são instrumentais e devem ser usadas com consciência. “É uma forma de acesso que nós temos hoje e que é bastante útil”, diz. “Mas atenção a quem está fornecendo [as músicas], se está sendo fiel aos autores e respeitando direitos autorais. A gente precisa pensar, refletir, não aceitar prontamente o que nos é dado”, conclui.

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Fonte: Jornal da Usp